Bom, cá estamos!
Bem vindos ao livro “Todas as minorias do mundo”, que em breve será adaptado por Miguel Falabella para a Globoplay com Arlete Salles, Claudia Raia e grande elenco. Nele, somos apresentados às histórias de um solitário, um órfão, uma enjeitada, uma anã, um gay, um bad boy e uma costureira empilhados numa kitnet literária repleta de poesias e frases de efeito.
O ponto de partida deste livro é a história de Crisóstomo, um pescador de 40 anos que se sente incompleto. Se sente metade do que poderia ser, por conta da solidão que sentia. Mais especificamente, Cris (vou chamá-lo de Cris, sinto que já posso adentrar no terreno das intimidades) tem vontade de ter um filho, de ser pai.
Na verdade, Cris já se sentia pai. Se sabia pai. Como se estivesse à procura de um filho perdido que buscasse retornar ao lar. Ao compartilhar seu desejo, sua urgência, com a natureza, à beira do mar, o pescador conhece o jovem Camilo. Esse rapazinho, essa delícia, tinha acabado de perder o avô (Rafa Kallimann’s voice) e encontrava-se sozinho no mundo. Ao se conhecerem, Cris e Camilo, era como se estivessem se reconhecendo como pai e filho. E após poucos minutos de conversa, um pedido e um aceite, eram de fato pai e filho. Muito intenso. Pareciam até duas… tinha pensado numa piada, mas estamos no mês do orgulho.
A partir daí, Mãe (o Valter Hugo, não qualquer mãe) vai nos apresentando a uma série de personagens e histórias que se entrelaçam e se complexificam, conferindo nuances umas às outras. Para além de rótulos como “a enjeitada” e “o maricas”, como são apresentadas algumas personagens (sabia que personagens são sempre femininas? São sempre as personagens. Sabia? Comenta aqui embaixo se sabia! Eu nem sei se isso é verdade!), somos apresentados às suas histórias, suas marcas, seus traumas, suas feridas, suas alegrias. Sabe o filme Cruella? Não, não vamos falar sobre isso....
A trama se passa num interior rural de Portugal em que Crisóstomo, Camilo, Isaura, Antonino, Matilde, Nininha e outros encontram-se todos na solidão. Num trecho que se repete, Mãe anuncia que os personagens estão “caindo dentro de si mesmos”, sem conseguir estabelecer laços com os outros. A partir do encontro, porém, ao costurar e entrelaçar suas dores & delícias acabam descobrindo uns aos outros e a si mesmos e formando uma grande família funcional na sua disfuncionalidade.
Não vou poder aqui destrinchar toda a narrativa do livro, tanto pela falta de espaço quanto pela falta de habilidade. Também não quero dar muitos spoilers. Queria abordar algumas questões que me tocaram muito profundamente na leitura, pela conexão que se estabeleceu entre minha própria origin story e àquelas que me foram apresentadas.
This is real, this is me, I’m exactly where I’m supposed to be… será?
Um dos pontos centrais do livro é a questão da solidão e a busca por sentidos e possibilidades de ser feliz. Mãe persegue inúmeras definições do que é felicidade e do que é amor a partir dos conflitos particulares que cada personagem apresenta.
O peso do machismo, da homofobia, da fetichização do outro, entre outras opressões que nos atravessam, constrangem e definem, permeiam as histórias que nos são contadas. Ainda que não nos sejam apresentadas de maneira panfletária. Transparecem a partir da gravidade do cotidiano, do massacre nosso que cada dia nos dá, das violências corriqueiras. E, dentro disso, a partir disso, cada personagem vai navegando nas possibilidades de existência que lhes são apresentadas.
Antonino, o “homem maricas”, tem sua vida marcada pela percepção negativa que seus vizinhos e o povo de seu vilarejo fazem dele. Matilde, sua própria mãe, influenciada pela boca nada miúda, aprende a desprezar o filho, embora não tenha coragem de praticar atos de violência física contra ele, ao contrário dos machões da vizinhança que o agridem. Antonino, com esse ódio que lhe é dirigido, aprende a se odiar, a tentar se modificar, a tentar se esconder de si mesmo. Não quer, afinal, dar desgosto à sua mãe. Que filho quereria isso?
Existe aquele ditado, apontado como de algum país do continente africano [carece de fontes], que diz “It takes a village to raise a child’. Em tradução literal: é necessária uma vila para criar uma criança. Isso quer dizer que nós não somos apenas filhos, filhas, filhes de nossos pais. Nós somos filhos dos nossos vizinhos, dos nossos parentes, dos nossos colegas, dos nossos amigos. Marc Bloch, historiador francês importantézimo, já dizia que somos mais filhos do nosso tempo do que dos nossos pais. Acho que é isso. Tô citando livremente.
Aqui no Rio (sim estou falando do Rio de Janeiro, capital do império de Anitta), muitos têm o hábito de dizer “sou cria de (insira aqui um lugar)”, sobretudo em contextos de pertencimento à favelas, comunidas e territórios periféricos. De fato, para além de filhos, filhas e filhes de nossos pais, somos “crias” dos nossos lugares e daqueles que nos cercam (mas esse foi só um exemplo antropológico, não é pra sair por aí dizendo “sou cria da Santa Cecília”. Vamos nos poupar!)
Considerando isso, é possível entender a violência de ser interpelado por violência por aqueles ao seu redor. Sobretudo a respeito de algo que é inerente à sua existência. O “homem maricas” não escolheu ser “o homem maricas”. Esse “título” lhe foi outorgado, ou melhor, lhe foi impingido pela sociedade que fabricou esse estereótipo-estigma muito antes dele nascer e que o utiliza para constranger, (de)limitar e reprimir.
Mas é possível fugir de quem se é?
Em determinado momento somos apresentados à Maria, mãe de Isaura. Um dia, do nada, Maria passa a falar com sotaque francês. “Diziam que lhe dera a síndrome do sotaque estrangeiro [...]’ (p. 45). Aquilo a incomoda profundamente, causa perturbações existenciais. Afinal, “um sotaque era uma identidade estrangeira, sinal de uma pessoa que não pertencia àquele lugar, de alguém que vinha de outra paragem. Era outra pessoa. Outra Maria.”
Falar com “sotaque estrangeiro” representa falar com uma voz que não é sua. Num sentido mais metafórico, simboliza tentar existir com uma existência que não é sua. Sinal de uma pessoa que não se pertence. Outra pessoa. Diante do massacre que muitos de nós sofremos por sermos nós mesmos, parece-nos inevitável a busca por tornar-mo-nos outros. Por algum tempo, isso pode ser até necessário para a própria sobrevivência. Mas a longo prazo, me parece inviável não sentir a urgência febril de dar vazão ao que se é de verdade.
Esse é um grande ponto do livro. Vejam essa passagem belíssima da personagem Isaura, “a mulher enjeitada”, que é filha da Maria, a do sotaque francês:
“Ser o que se pode é a felicidade. Pensou nisto a Isaura. Não adianta sonhar com o que é feito apenas de fantasia e querer aspirar ao impossível. A felicidade é a aceitação do que se é e se pode ser. Sentou-se ao pé da mãe e percebeu como ela piorara. Estavam as duas tão longe do dia em que, tão trágica como comicamente, a Maria começara a falar semelhante aos franceses. A voz apodrecera-lhe na boca. Estava afundada goelas abaixo sem nunca mais voltar a ser ouvida. Morrera. A voz dela morrera. Longo tempo a Maria se fora sentindo divergir de quem era. Pensava a Isaura que a infelicidade da mãe estava simples de compreender, porque, desviada da sua identidade, não pôde seguir sendo quem era”. (p. 86)
Sentiu? Acusou o golpe! J’accuse!
Já dizia a cantora Pitty, “seja você mesmo que seja estranho, seja você mesmo que seja bizarro bizarro bizarrô!”
“O Filho de Mil Homens” é meu primeiro contato com Valter Hugo Mãe. Está sendo, na verdade, porquanto ainda estou refletindo e reverberando cada frase e cada imagem construída.
A escrita de Mãe é extremamente sensível e poética (o que para mim é amplificado pela escrita em português de Portugal). O uso de repetições para demarcar ideias, similaridades, conexões, atravessamentos é ótimo, quase como um “refrão” a lembrar da linha narrativa central que o autor busca estabelecer. A repetição é o que há de comum entre as pessoas.
Os capítulos em que Antonino narra sua história e sua jornada íntima na lida com sua homossexualidade me emocionaram profundamente. Me vi ali refletido, nas inseguranças, incertezas, no auto desprezo, na busca por se reprimir para não magoar aqueles que amamos e que talvez não nos amem se formos quem somos. Isso tudo faz parte de uma tragédia experimentada coletivamente. Algumas partes li em voz alta, como se a voz da personagem fosse minha, e em algum momento foi. E naquele momento era.
Um outro momento que me tocou muito foi uma passagem foda em que uma das personagens, a anã, aparece conversando com suas vizinhas. Estava grávida, para surpresa de todos, e explicava-lhes o ocorrido.
“A anã suspirou. A verdade era que não tinha encontrado um cavalheiro e os amores não lhe vinham nunca mais. Estava grávida, sim, mas não era coisa do amor, antes de uma rotina de solidão que enfraquecia a resistência e intensificava as vontades. [...] Dizia que havia quem a incomodasse à procura de se meter com ela, e ela, nem sempre querendo, tinha pouca força e deixava que acontecesse como quem despachava um assunto. Despachava assim tantos assuntos, era só mais um, a servir de bocadinho de um certo afecto. Porque um homem tocando-lhe, ainda que de modo egoísta e a pensar em outras mulheres, só pelo toque já engana um bocado o coração, que pensa afectivamente ou guarda afectivamente cada sinal de abraço, cada sinal de beijo”. (p. 40)
Quando li isso, senti imediatamente a porrada. Vocês sentiram? Porque eu senti. Fiquei pensando na minha ainda breve trajetória como jovem negro homossexual (surpresa!) e como, desse lugar de “marginalização afetiva” em que me encontro, muitas vezes me entreguei a amores que em verdade eram “fraquezas” derivadas de intensas rotinas de solidão. A gente se submete a cada coisa, né?
A despeito de nossas experiências serem objetivamente diferentes, eu e a personagem nos encontramos nesse lugar de reflexão sobre nosso lugar no mundo, mais especificamente dentro da dinâmica dos afetos e das relações interpessoais. Afinal, há mundo fora da dinâmica dos afetos e das relações interpessoais?
A obra de Mãe fala, afinal, da necessidade que temos de nos conectar com as experiências e trajetórias dos outros. Estabelecer pontes entre as nossas histórias e as histórias alheias. Todos nós temos bagagens gigantescas que carregamos e, em algum momento, precisamos botar para fora. Nesse processo de elaboração do “si mesmo”, encontramos pontos de contato com as feridas dos outros.
“O Crisóstomo disse ao Camilo: todos nascemos filhos de mil pais e de mais mil mães, e a solidão é sobretudo a incapacidade de ver qualquer pessoa como nos pertencendo, para que nos pertença de verdade e se gere um cuidado mútuo. Como se os nossos mil pais e mais as nossas mil mães coincidissem em parte, como se fôssemos por aí irmãos, irmãos uns dos outros. Somos os resultados de tanta gente, de tanta história, tão grandes sonhos que vão passando pessoa a pessoa, que nunca estaremos sós” (p. 205)
Estabelecer partilhas de afeto e cuidado mútuo com outras pessoas é fundamental para a experiência humana. Por isso são importantes as identidades, as bandeiras, os orgulhos. Mesmo que haja muita dissidência, mesmo que haja muita violência nos rótulos, há também valor em se integrar a um corpo-coletivo. Há valor em não se enxergar só. A repetição é o que há de comum entre as pessoas.
Sabe quando você faz um tweet muito específico que você acha “nossa, tô hermética!” e alguém da RT comentado ou responde “nossa, muito eu!”. Acho que tem algo a ver com isso, não tenho certeza. Mas é gostoso!
Lembro de quando SZA, cantora norte-americana, lançou o álbum CTRL lá nos idos ancestrais de 2017. Na época, eu e meus amigos ficamos viciados em todas as músicas e era fascinante para mim como uma mulher negra de outro país conseguira traduzir em suas letras alguns dos pontos mais sensíveis da minha trajetória, algumas das questões mais íntimas que, por muitas vezes, não tenho nem coragem de dizer em voz alta. Aquele álbum foi um catalisador de jornadas, um transatlântico que permitiu o reconhecimento de “si” e do “outro”. Se reconhecer no outro. Se reconhecer em si mesmo. É foda.
Bom pessoal, acho que vou ficando por aqui. Tá bom, né? Desculpa qualquer coisa.
Um beijo Valtinho. Um beijo para todas, todos e todes.
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Até a próxima niusléter!
Você começou com meu livro preferido. Que surpresa boa 🥰
MUITO BOM, BRAUNI! Sou tua fã.